12 meses 12 peças | A Casa | Pintura de Abel Salazar em destaque – Museu de Lamego
NU MASCULINO de Abel Salazar
Agosto, mês luminoso e quente, em apelos de campo e mar cerceados por receios e incertezas, fazendo da “casa” o ambíguo porto, que ora nos abriga ora nos aprisiona. Desafio, resistência e teimosia, também presentes em Abel Salazar (1889-1946), autor que revisitamos a partir deste óleo sobre madeira, doado ao museu de Lamego, em 1964, por João de Almeida e que agora se partilha.
Ser invulgar e multifacetado, médico, professor, investigador, artista “personalidade excepcional da primeira metade do século XX. […] uma figura da renascença porque acumulou a ciência e as artes com a filosofia, o pensamento crítico e a escrita” (Soares, 2006, 9). O espírito sagaz e inquieto, a dimensão e qualidade humanas, moverem-lhe um trilho árduo em vários sentidos. A admiração de muitos portugueses e estrangeiros, mas também a humilhação e a perseguição dos dirigentes do seu país, com a anuência e o apoio de muitos dos seus pares. Nasceu em Guimarães, onde frequentou o Seminário–Liceu até transferência do pai[1] para o Porto. Infância passada entre a tranquilidade e os afetos da tia Maria da Luz e da avó Josefa e os desassossegos da escola, pese embora o brilhantismo demonstrado. Ambientes e relações marcariam a sua personalidade em dois pólos opostos. Já homem, referir-se-ia a “Guimarães como um «meio seráfico e beato» onde «todo o dia tangiam os sinos, sucediam-se as missas, as novenas, os lausperenes e as ladainhas», uma cidade semelhante a Roma, onde «o espírito é o mesmo, com a diferença apenas que separa o imperial do pirismo»” (Apud. Cunha, 2006, 205). Sob este humor limado discorre uma crítica à Igreja, aos seus rituais e práticas. Insatisfação e desilusão que o impelem para a necessidade de compreender a vida e os seus propósitos, lhe imprimem uma espiritualidade particular e em parte lhe determinaram as opções. Em 1903, o “moço de aspecto simples, calado…barba a despontar, parecendo um colegial filho-família bem-comportado (Cunha, 2006, 207, 209), matricula-se no 4º ano, no Liceu Central do Porto. Rapidamente mostrou o seu lado irreverente, acutilante, nos esquiços onde caricaturava os professores, nas tertúlias em casa do amigo “Miguel”, onde passavam a “pente fino” o quotidiano escolar e debatiam ideias e projetos… Reflexões depois vertidas na breve publicação O Arquivo[2], posteriormente, continuadas na fértil prestação em muitos jornais e revistas[3]. Vivências que lhe aguçaram o olhar, a sensibilidade e a consciência para o complexo contexto social, político, cultural… do seu tempo. Em 1909, entra para a Escola Médico-Cirúrgica, no Porto, onde se doutorou em Medicina (1915) com a classificação de 20 valores. Aí enceta uma carreira brilhante: como professor (1915-1926), é notável a visão de vanguarda que tem do ensino e da escola, privilegiando a interdisciplinaridade e a prática, atribuindo ao aluno uma liberdade e um papel atuante no processo de ensino-aprendizagem; e como cientista e investigador, no Instituto de Histologia e Embriologia (1919), que criou e dirigiu, com extraordinário mérito e reconhecido prestígio internacional[4] Foram muitas as viagens e conferências que realizou em representação da Universidade e do país. Todavia, a vida de Abel Salazar atravessou meia centena de anos convulsos, marcados por acontecimentos como o Regicídio, a Implantação da República, as duas Grandes Guerras, a Guerra Civil de Espanha, a subida ao poder de Salazar, a Ditadura… circunstâncias pouco compatíveis, com o seu espírito livre e irreverente, e com a sua consciência social e humanismo. As posições assumidas, a “cruzada educativa” (Cunha, 2006, 219), em que se empenhou a partir de 1932, depois de sair da Casa de Saúde[5], onde recuperou de um esgotamento que lhe consumiu anos de vida, e a sua ligação à Maçonaria, moveram-lhe forte contestação do regime. Foi expulso, perseguido, afastado da Universidade (1935), impedido de frequentar os laboratórios e as bibliotecas da Faculdade, que ele próprio tinha ajudado a formar. Como ele, outros[6] sofreram similar perseguição, que em muito diminuiu o país e o privou dos seus melhores. A sua reintegração na Universidade do Porto só viria a ocorrer em 1941, na Faculdade de Farmácia, onde o Instituto para a Alta Cultura lhe cria o Centro de Estudos Microscópicos. Nesse período, intensifica a escrita e a colaboração com periódicos e revistas. Fará da sua casa, em São Mamede Infesta, o seu refúgio e fortaleza, a partir da qual continua a ver, a refletir e a intervir. A capela transformou-se em laboratório e ateliê. A arte em “amante” e terapia, de instrumento de denúncia e defesa dos seus valores. “A par do rigor metodológico imposto pelo laboratório compreendeu que a arte é outro meio, mais incerto e subtil, de procurar a nossa razão de ser.[…] terapia para a alma que usa as emoções e um olhar fraterno sobre as gentes e as suas vidas” (Silva, 2010, apud Alves, 2014, 6). A arte contribuiria, ainda, para prover às despesas após a perda do salário, contrariando a afirmação de que esta lhe era cara e de que não venderia as obras, antes preferindo dá-las. Desenhador compulsivo, experimenta e cria, explora materiais e técnicas. Tal como na ciência, também na pintura, na escultura, na gravura, nos cobres cinzelados, encontramos a mesma ânsia de interrogar, compreender, experimentar, mudar…espírito em fúria, busca incontida de uma estética em que traço e paleta lhe vão timbrando uma obra de forte cunho social. Na pintura, excetuando o retrato, será a mulher, intérprete da sua própria saga, o tema dominante. Mulher-operária, mulher-mãe, mulher resistência, vergada pelo esforço árduo do trabalho nos armazéns, na casa ou no campo. A mulher, conhecedora da miséria, da brutalidade e do esquecimento. Há um sentido épico nestas mulheres. Os seus corpos voltam-se em escorsos violentos, os rostos invisíveis imersos nos lenços. Ocupam pequenos e grandes espaços, em dinâmicas composições estruturadas por pinceladas espessas, espontâneas e febris manchas de cor banhadas de luz. Evoluem para uma paleta sombria, crepuscular, a tocar a monocromia. Formas e volumes sugeridos por subtis gradações de claro / escuro e breves apontamentos lumínicos. Com igual dignidade representa as “midinnetes” de Montmartre”, as “garotas do Boulevard” parisiense, frágeis e sensuais. Vemos-lhe o rosto recortado pela larga aba da capeline ou pelas macias golas de pele.
Peculiar é a obra do Museu de Lamego, um nu masculino preenche o espaço de grandes dimensões. O corpo, em posição frontal, exibe na sua volumetria e tensão (no contraponto com a cabeça, nas diagonais, na perna fletida e nos braços que sustentam o farto molho de espigas) uma expressão de força e virilidade, que o olhar e o rosto contrariam, atribuindo-lhe uma certa androginia. Sob uma poalha dourada que irrompe numa torrente de luz.
Encontramos no mural executado por Abel Salazar no antigo café Rialto[7], no Porto, duas figuras similares, integradas numa composição de grande dinamismo e intensidade. Um grupo de ceifeiras, volteiam em escorsos violentos, sob o esforço do trabalho e a agressão dos elementos. Cortam o cereal que unem em pesados molhos para transportar para as eiras. Serão as mãos destas mulheres que os hão de transformar em pão. Em 1944, uma edição do jornal “O Século” dá conta desta obra. “No pavimento superior avulta um desenho-mural a carvão, da autoria do sr. dr. Abel Salazar, em que, a traço vigoroso está simbolizado o esfôrço da humanidade através da historia.” (apud: Santigo, 2012, 23). O autor refere-se à destruição de algumas destas obras pelo “Estado Novo que não conseguiu suportar as ceifeiras e as bandeiras que indiciavam, na opinião do ‘tapadores’ o ‘vento que vem de Leste’ ” (Santiago, 2012, 23). No “amargo vagamundear por cidades europeias” (Silva, 1989) visitou galerias e museus, que lhe permitem absorver uma vasta cultura artística. Considerado um precursor do neorrealismo (França, 1960), foi na luz de Rembrandt (1606), em Callot (1592-1635), Millet (1814-1875), Daumier (1808-1874), Carrière (1849-1906), Streinlen (1859-1923), nas vibrações impressionistas e na osmose com clássicos e académicos, modernistas e futuristas, que Abel Salazar cria a sua linguagem estética.
Em 1950, Egas Moniz [8] refere: “não foi apenas um notável histologista, foi um dos grandes artistas da sua época […] sem obediência em escolas, nem prisões convencionais […] A sua obra é pessoal, autóctone, livre como era o seu espírito, que não aceitava restrições.” (Apud: Alves, 2014). Como em tudo, foi fiel a si próprio, aos seus princípios e ideias, e ao que considerou serem as grandes problemáticas sociais do seu tempo e à urgência na construção de uma sociedade melhor.
Ostracizado pelo regime, até na morte, que, não podendo evitar a manifestação de pesar e de homenagem ao artista, o contesta. A mensagem de Abel Salazar, atual na sua essência e pressupostos, continua presente na sua obra, hoje distribuída pela Casa-Museu que leva o seu nome e coleções públicas e privadas.
[1] O seu pai, homem culto, organizou a biblioteca / arquivo da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, professor de Francês, escreve para a Revista de Guimarães e no periódico Enthusiasta. Em 1891-1892 foi transferido para a Escola Infante D. Henrique, no Porto.
[2] Da qual saíram apenas dois números.
[3] Afinidades; Povo do Norte; Seara Nova, O Primeiro de Janeiro; Sol; Voz da Justiça; Sol Nascente; Foz do Guadiana, Medicina, revista de Ciências médicas e Humanismo, O trabalho, O diabo…
[4] Estuda a estrutura e evolução do ovário, descobre as mitoses atípicas e sideradas da granulosa dos folículos, os corpos atrésicos autónomos, as células tanófilas…Introduz novos métodos de técnica histológica, como o tano-férrico, etc, que lhe permitiram o conhecimento de vários elementos citológicos.
[5] Casa de Saúde São João de Deus, em Barcelos.
[6] Adelino Hermínio de Palma Carlos; Mendes Cabeçadas; Norton de Matos; Sílvio de Lima; Aurélio Quintanilha; Rodrigues Lapa; Eduardo Ferreira dos Santos Silva; Mem Verdial.
[7] Edifício com projeto do arquitecto Artur Andrade, inaugurado em 1944, no Porto. Com murais de Dórdio Gomes, Guilherme Camarinha e Abel Salazar. Foi o local de reunião de uma geração de opositores ao Estado Novo, ligados à cultura, ciência e arte, encerrado em 1972, é hoje propriedade do Millenium BCP.
[8] António Egas Moniz (1874-1955), médico, neurocirurgião, investigador, professor, escritor, diplomata. Prémio Nobel de Fisiologia – Medicina em 1949.
NU MASCULINO
Abel Salazar (1889-1946)
S/d
Óleo s/madeira
Dim. [Alt.] 200 x [Larg.] 100 cm
Doação Dr. João de Almeida (1964)
Inv. ML 1680
BIBLIOGRAFIA
ALVES, Manuel Valente (2014) – “Abel Salazar, Egas Moniz e as Duas Culturas”. Conferência proferida na Casa Municipal da Cultura, em Estarreja, no dia 17 de maio de 2014. Disponível em: http://www.apcm.pt/wp-content/uploads/2015/01/Conferencia-AS-EM-Estarreja.pdf [Consultado em: julho de 2021].
Casa Comum / Fundação Mário Soares – Arquivos – Abel Salazar /CMAZ (01 a 07). Disponível em: http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_2839#!e_2845 [Consultado em: junho / julho de 2021].
CUNHA, Norberto (2006) – “Ideário de Abel Salazar”. In: Vários – O Desenhador Compulsivo. Catálogo. Lisboa. Ed. Ministério da Cultura; Fundação Mário Soares, Universidade do Porto, pp. 203-223.
FRANÇA, José-Augusto (1967) – A Arte em Portugal no Século XIX. Vol. II. Lisboa: Betrand Editora.
FRANÇA, José-Augusto (1984) – A Arte em Portugal no Século XX (1811-1961). Lisboa: Betrand Editora.
LOUSA, Teresa (2016) – “Abel Salazar: Intelectual, Artista e Resistente”. In: Art Sensorium. Revista Interdisciplinar Internacional de Artes Visuais, Vol. 3 / Nº 1 junho – julho. Disponível em: http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/sensorium/article/view/2338/1559 [Consultado em: julho / agosto de 2021].
MILHEIRAS, Josué (2008) – Abel Salazar: uma perspectiva caleidoscópica. Dissertação de Mestrado apresentada, na Universidade da Beira Interior. Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.6/3399 [Consultado em: julho de 2021].
PIRES, José Cardoso (1975) – “Abel Salazar”. In: Diário de Lisboa, 17 Dez, 1975, p. 1. Disponível em. http://hemerotecadigital.cmlisboa.pt/EFEMERIDES/josecardosopires/Textos/PDF/DiariodeLisboa_17Dez1975_0003-0004.pdf [Consultado em: julho de 2021].
SANTIAGO, Pedro (2012) – Refletir [n]o café Rialto. p. 23. Disponível em: https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3538/1/15-25.pdf [Consultado em: julho de 2021].
SILVA, Amândio (1989) – Abel Salazar Artista no 1º Centenário do seu Nascimento. Porto. Ed. Câmara Municipal do Porto / Comissão Organizadora das Comemorações do centenário do nascimento de Abel Salazar.
SILVA, Artur Santos (2010) Transparência. Abel Salazar e o seu Tempo, um Olhar. Porto. Ed. Museu Nacional Soares dos Reis.
SOARES, Mário (2006) – “Abel Salazar”. In: Vários – O Desenhador Compulsivo. Catálogo. Lisboa. Ed. Ministério da Cultura; Fundação Mário Soares, Universidade do Porto, pp. 9-11.
Vários (1998) – Abel Salazar – Retrato em Movimento. Porto, Campo das Letras Editores.
Vários (2006) – O Desenhador Compulsivo. Catálogo. Lisboa. Ed. Ministério da Cultura; Fundação Mário Soares, Universidade do Porto.
Fonte: www.museudelamego.gov.pt