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Os “Contos Bárbaros” de João de Araújo Correia inseridos no Plano Nacional de Leitura

Em julho, quando o corpo e a alma da maior parte dos portugueses anseia pela vitamina das férias, o Plano Nacional de Leitura (PNL) divulga a lista atualizada de leituras recomendadas para um público que vai desde os seis meses até à idade adulta. Este ano não fugiu à regra e foram já difundidas as sugestões de leitura para o próximo ano letivo.

Os “Contos Bárbaros” de João de Araújo Correia inseridos no Plano Nacional de Leitura

Entre os neófitos, no rol das obras aconselhadas para o ensino secundário, encontra-se Contos bárbaros, de João de Araújo Correia. Esta é uma estreia curiosa, visto que a edição original do primeiro volume de contos assinado pelo “mestre de nós todos” data de 1939. Recentemente, em 2014, este título conheceu a sua 6ª edição, como resultado da conjugação de esforços da Tertúlia João de Araújo Correia e da Âncora Editora. Não é difícil acreditar que esta nova edição tenha sido fundamental para redescobrir um autor e uma obra há muito afastados do ensino e dos escaparates.

Contos bárbaros começa por surpreender pelo título. O autor justifica-o apenas no “Prefácio à segunda edição” da obra em análise, publicada em 1968:

Refundir os Contos Bárbaros seria barbaridade. Saíram tão de dentro, tão espontâneos e tão fluentes da alma do autor, que seria criminosa a tentativa de os civilizar. São bárbaros por natureza. (2014: 9)

Estes “contos bárbaros”, diz ainda no mesmo prefácio, “São ficções próprias da terra onde nasci e donde me provém o cerne de escritor”. Daí o caráter realista que geralmente se atribui à prosa do contista.

O mundo onde o nosso escritor germinou é rural, e os seus contos são bem a prova disso. Familiarizado com as dificuldades enfrentadas pelos seus conterrâneos, João de Araújo Correia retrata em “A velha das panelas”, “Miguel” ou “O enforcado” a miséria que persegue quem tira da terra o seu sustento, independentemente do seu estatuto social. Por outro lado, “Maria de Lurdes” e “Para o meu bispo” deixam adivinhar a ameaça que paira sobre os valores do campo face às investidas homogeneizadoras do mundo urbano. As origens rurais do nosso escritor revelam-se também na denúncia da “tragédia das árvores”, patente em “A mimosa do Carrapatelo” e “A Quinta do Algarve”.

Nestes contos, o torrão natal do autor está ainda representado através do seu português peculiar, traço identitário da região que João de Araújo Correia pretende inscrever no mapa nacional através da sua obra.

De forma mais ou menos declarada, quase todos os Contos bárbaros se apresentam como uma conversa, transformando o leitor num ouvinte cativo do suspense e da vivacidade da linguagem. Além disso, em vários momentos a prosa de Contos bárbaros é altamente poética.

Para o “cronista das gentes do Douro”, como lhe chama Martins de Freitas, o conhecimento da sua terra é essencial para, a partir dela, construir mundos credíveis cujo centro é o Homem. Como diz o escritor-médico no primeiro discurso reproduzido em Palavras fora da boca (1972: 15-16), “A minha vocação não é ver doentes. É ver homens. Vê-los em seu labor e em seu descanso. Ver o que fazem e pensam para lhes interpretar acções e silêncios como escritor”.

João de Araújo Correia, miniaturista confesso, aprofunda estes “casos humanos” em narrativas que, em média, não ultrapassam quatro ou cinco páginas, o que implica mestria no domínio da língua e da técnica narrativa.

Referindo-se ao conjunto da sua obra, considera o contista, em Palavras fora da boca, que nela a bondade está pouco representada, “porque o Mal é mais dramático do que o Bem”. Em Contos bárbaros o bem só sai vitorioso no “Conto de Natal”, com uma criança enjeitada a ser reconhecida pelo pai, que promete casar com a mãe, em “Para o meu bispo”, no qual a azeda mãe do bispo estoira literalmente de felicidade por regressar à sua vida simples da aldeia, e em “O ferro bento”, uma curiosa história em que o feitiço se vira contra o feiticeiro, punindo quem, não sendo crente, vive de explorar a fé alheia.

Há também histórias de amor que privilegiam tentativas amorosas de homens e mulheres já maduros. Todos se revelam amores de perdição. Aliás, de uma maneira geral, nos Contos bárbaros, o mundo dos afetos não é risonho. Acresce que a morte, acompanhada por vezes de violência, é presença frequente nestes contos.

Uma palavra ainda para a defesa dos valores humanitários subjacente a “O Católico”. Registe-se, a propósito, o contraste entre o Dr. Hermenegildo, no conto homónimo, e o seu colega de “História duma doente”: à desumanidade do primeiro contrapõe-se o excesso de zelo do segundo, o qual nem por isso impede a morte da sua paciente. O padre “Cigano” de “Uma sombra”, pela sua natureza materialista e interesseira, é igualmente bem diferente do Padre Bento de “Os livros do Diabo”, pois o último “Tinha um coração grande como o mundo” (42).

Basta esta breve apresentação de Contos bárbaros para perceber que não faltam a este volume de contos predicados para satisfazer o caderno de encargos que, segundo o site, orienta a seleção das obras do PNL: “a educação do gosto e o amor à Língua Portuguesa”, “o mérito literário” e “a sua qualidade estética”.

A entrada de Contos bárbaros para o PNL constitui mais um marco na história da receção da obra de estreia de João de Araújo Correia no reino da ficção. No início dos anos 70, pouco depois de lhe ter sido atribuído o Prémio Nacional de Novelística, este foi o título escolhido do nosso contista para integrar a Biblioteca Básica Verbo-Livros RTP. Em 2002, Fernando Pinto do Amaral considerou Contos bárbaros um dos “100 livros portugueses do século XX”. Esperamos que não fique por aqui e que a divulgação deste feixe de contos sirva de incentivo à descoberta de um autor de extração camiliana onde há muito que admirar.

Contos bárbaros: contos que ainda mexem (e fazem mexer)

Ana Ribeiro

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