N222: a melhor estrada do mundo é portuguesa
Uma fórmula definiu que a N222, que liga Peso da Régua ao Pinhão, é a melhor do planeta para conduzir. O Observador aventurou-se com um Porsche de 408 cavalos. Apertem os cintos, senhores…
A sinalização pedia calma. O fotógrafo do Observador também, porque seguia empoleirado na janela da carrinha, qual Chuck Norris, destemido aventureiro com a arma em punho, para eternizar aquela vida toda que abraça e envolve o Rio Douro. O cenário da estrada N222 é impecável, com vinhas e oliveiras a perder de vista, e os pássaros e a brisa que agita as árvores encarregues da banda sonora. Aquele azul do rio ombreia pelo protagonismo com a cinza do alcatrão, com a simpática concorrência do verde e castanho da vegetação na medida certa. É uma autêntica melodia visual, que não sabe tocar fora do tom.
Agrafado às mãos do Observador estava o volante de uma Audi A4 S Line, que pedia exatamente o oposto da tal sinalização. O motor queria mais, queria aquecer e roncar. Os pneus desejavam espalhar por todo aquele troço mágico a sua pele. Os faróis queriam lavar as vistas, o travão implorava por passar despercebido e não entrar em muitos trabalhos. A grelha, a que suporta os quatro anéis e não sofre de fastio, procurava engolir os pobres insetos que se colocavam pelo caminho. Quando alguém está a conduzir e o seu cérebro começa a ser intoxicado por flashs de vídeos do YouTube de Juan Manuel Fangio, um craque da Fórmula 1 de outros tempos, é caso para dizer “Houston, we have a problem”.
Acabou por ser tudo pacífico, senhores, pelo menos enquanto o passeio no Porsche não aconteceu. Se a ideia fosse aniquilar qualquer tipo de emoção e sensação forte, esta experiência seria provavelmente ao volante de um Citroën 2 cavalos, com a pinta e ginga de “Duarte e Companhia“. Mas, afinal, que pedaço de alcatrão é este que ocupa agora o trono mundial? É a N222, uma estrada que faz a ligação entre Peso da Régua e Pinhão, nos distritos de Vila Real (margem norte) e Viseu (margem sul).
Os números e uma fórmula matemática é que o dizem: esta é a melhor estrada do mundo para conduzir. O estudo, que contou com candidatas dos quatro cantos do mundo, tinha em conta a aceleração, o raio das curvas e o comprimento das retas (digamos assim, para descomplicar, pois aquela fórmula impõe respeito). A paisagem também ajuda, claro. Ou seja, toda esta ginástica no cálculo serviu para definir a melhor estrada do mundo para guiar, pelo prazer, pelo desafio, pela relação direta entre retas e curvas.
A estrada ideal tem uma relação 10:1, que é como quem diz dez segundos de reta para cada segundo gasto a curvar. A N222, a tal rainha portuguesa, regista 11:1, o mais próximo da perfeição entre as candidatas, ganhando assim o rótulo de “World Best Driving Road”
Segundo o estudo promovido pela Avis rent a car, a estrada ideal tem uma relação 10:1, que é como quem diz dez segundos de reta para cada segundo gasto a curvar. A N222, a tal rainha portuguesa, regista 11:1, o mais próximo da perfeição entre as candidatas, ganhando assim o rótulo de “World Best Driving Road”. A Big Sur, na Califórnia, e a A535, no Reino Unido, completam o pódio, com índices de 8,5:1 e 8,4:1, respetivamente.
Resta saber, claro, quem foram as cabeças pensadoras que queimaram pestanas e exercitaram os cérebros como se estivessem numa aula de zumba. Foram três senhores. Hermann Tilke é, porventura, o mais conhecido pela ligação à Fórmula 1. Tilke começou como piloto aos 18 anos, formou-se depois em engenharia civil e fundou em 1984 a sua empresa de engenharia e arquitetura, ao serviço da qual inventou as pistas de F1 construídas nos últimos 20 anos.
John Wardley, um designer de trajetos radicais, foi outro guerreiro nesta aventura. Este senhor é o responsável por algumas das montanhas-russas mais famosas e emocionantes do mundo — Nemesis e Oblivion em Alto Towers, no Reino Unido, por exemplo. Mais curiosa ainda foi a mãozinha que este britânico deu a cinco filmes de James Bond: ajudou nos efeitos especiais. Para Wardley, John Wardley, uma bela estrada para conduzir deve transmitir ao condutor uma confusão de sentimentos, que vai da emoção à intimidação, culminando depois na diversão e prazer.
Hermann ficou encarregue de testar o ADR (Índice de Condução Avis), enquanto Wardley esteve atento aos pormenores, às sensações, às diferentes emoções, campo esse onde joga em casa. “Variações na experiência é o fator principal. Velocidades diferentes, uma mistura de curvas e retas e mudanças nos pontos de vista são comuns à condução e à experiência de uma montanha-russa”, explica. Voltando atrás, à experiência do Observador ao comando pela N222, é verdade que nunca foi aborrecido. As curvas chegavam na altura certa, não permitindo uma condução mole, embora ao mesmo tempo abrisse a porta à beleza da paisagem. E a tal intimidação? Bom, é possível dizer que também existe, mas já lá vamos…
Falta o comandante do ADR: Mark Hardley, um físico quântico. Este britânico é o coordenador de um departamento da Universidade de Warwick, uma das principais universidades do Reino Unido. “O processo foi bastante exaustivo: em primeiro lugar aplicámos alguns conhecimentos físicos a uma ampla variedade de modelos de estrada. Posteriormente consultámos e envolvemos uma série de especialistas notáveis em diferentes áreas, inclusive Hermann Tilke e John Wardley, que ajudaram a refinar e testar este índice. Por fim, mapeámos meticulosamente estradas por todo o mundo contra estes parâmetros rigorosos, de forma a identificar a melhor estrada do mundo para conduzir”, explica.
UM GENERAL E UM EXÉRCITO DE 408 CAVALOS À DISPOSIÇÃO
Enquanto o Observador resistia a ímpetos malvados, daqueles que miraculosamente transformam o pé direito num calhau com 300 quilos, no banco de trás seguia um dos pilotos profissionais, que garantia que não se empregava o verbo “descambar”. Luís Lacerda, de 33 anos, passou muito tempo da sua infância naquela zona. O sotaque já o denunciara. À chegada a Pinhão, que é anunciada por uma ponte de ferro, Luís quis fotografar uma placa de uma quinta. Daqueles tempos de garoto lembra-se bem das matanças do porco e das vindimas. E, com nostalgia, recorda também algo que aprendeu e que, lamenta, vai-se esfumando: “Quando se serve o vinho do Porto, a garrafa anda na mesa no sentido do relógio. Está a cair em desuso.”
A N222 não é, por isso, nada de novo para ele. Gosta, mas reconhece que existem alguns perigos. “Aqui metem gasolina nos carros… e álcool”, diz meio a brincar, com um sorriso malandro. Quando alguém diz algo meio a brincar, há outro meio qualquer, certo? “É perigosa pelos camiões também. Mas apetece acelerar”, reconhece. Talvez entre aqui aquela história da intimidação de Wardley, nem tanto pelo que corre nas veias dos outros condutores, mas sim pelas curvas apertadas, pela falta de visibilidade, camiões e alguns aventureiros fora de mão.
Até Pinhão, onde se exibe uma belíssima estação de comboios, vestida de preto e azulejos espalhados pelo corpo, há miradouros que servem de boa desculpa para interromper o passeio. Há uma ponte romana, uma senhora a estender a roupa, um ciclista ou outro armado em Mario Cipollini e interrupções na estrada para cortar árvores. Veem-se também alguns velhotes à conversa, quem sabe a recordar histórias malucas naquela estrada. Ou, simplesmente, boas memórias.
Até Pinhão, onde se exibe uma belíssima estação de comboios, vestida de preto e azulejos espalhados pelo corpo, há miradouros que servem de boa desculpa para interromper o passeio. Há uma ponte romana, uma senhora a estender a roupa, um ciclista ou outro armado em Mario Cipollini e interrupções na estrada para cortar árvores.
Todas essas imagens, que poderiam muito bem vestir a camisola da melancolia, cheiram a uma qualquer tristeza romântica serena e convidam a viver devagar. Convidam também a respirar fundo, a olhar como quem não vai voltar a olhar, a deixar o tempo andar e a encolher os ombros. Mas essa paz, essa sensação de relógio parado, conheceriam um fim…
É que a estrela do dia já esperava o Observador. O motor do Porsche 911 Carrera 4 GTS já cantarolava, impaciente para rasgar as retas e curvas. Esta autêntica besta era conduzida por Pedro Moleiro, um experiente profissional piloto de GT e outras modalidades. A paixão pelas máquinas de quatro rodas ganhou-a graças ao pai, que chegou a participar num Rali de Portugal.
“A estrada, sem dúvida, é muita gira. Qualquer um de nós tem a sua estrada favorita, eu gosto muito da estrada do Guincho, fazia-a todos os dias para ir para casa. Faço aquela estrada desde sempre, saio do autódromo e vou por ali para ver o mar. É uma estrada linda. Esta, em termos de condução, claro que tem o rácio que se quer, e depois com esta vista diferente…”, assim começou a conversa com este general do asfalto, que tinha à disposição um exército de 408 cavalos.
O barulho do carro, no interior, é sedutor, é para os apaixonados pela coisa. Foi necessário colocar uns phones para ouvir-se decentemente Pedro. Aquele roncar, um grunhir muito primitivo, era um ruído delicioso. O piloto, mais do que habituado àquela adrenalina, não deixava de apontar e explicar as virtudes do carro. A forma como se agarrava nas curvas, a obediência do travão, a brecagem, a eletrónica a dar de si, era tudo como uma orquestra de alto gabarito. “A conduzir percebes que a reta não é suficientemente grande para te chatear. Fazes a reta no tamanho certo”, alertou, voltando a focar os holofotes na nova menina dos olhos do Douro.
Os “esses”, a curva em “U”, as muitas acelerações e travagens pelo meio, transportavam-no para o “rali da Córsega”. O entusiasmo é de menino, o tal fomentado pelo pai. Pedro Moleiro tem um filho ainda por fazer dois anos de idade, mas que já anda a toda a velocidade num carro construído pelo avô.
A tal viagem na Audi foi um conto de crianças, está visto. É que o desafio de Wardley, que desejava misturar emoção, diversão e intimidação, foi cumprido à segunda. A paisagem deixou de ser importante, não havia muito tempo para tal. Não entremos em números, descrições, curvas, loucuras, ultrapassagens ou quilómetros por hora. Afinal, a imaginação tem um poder que as palavras às vezes não emprestam (claro que também pode serbluff para parecer uma coisa cool…).
Foi intenso, irresistível para quem gosta de estrada, de corridas, pilotos, motores e cavalos a ulular. Chega a impressionar observar como as garras do carro se agarram à N222, oferecendo uma senhora estabilidade. Quando alguém sente necessidade de se agarrar e começa a travar à Flintstones — com os pés — a missão está cumprida. Está tudo dito.
“Esta zona é mais segundas, terceiras, terceiras, segundas, mais travão do que segunda…”, a retórica já estava ao nível do que se ouve nos autódromos e ralis. É mais forte do que ele, a voz acelera, as palavras atropelam-se. Foi para isto que desistiu do curso de Marketing e trabalhou em discotecas quando era garoto para financiar a aventura nos karts. Ponto final na cavalgada. Foi bom enquanto durou.
“Embora este seja um índice com uma base científica, depois das minhas experiências com Hermann e John, tornou-se bastante claro que as emoções e as paisagens foram fatores essenciais. (…) É por isso que acreditamos que a melhor estrada do mundo para conduzir é em Portugal, a Estrada Nacional 222″, sentencia Mark Hadley.
Esta região do Douro já vivia vaidosa por ser Património Mundial da Unesco, mas agora junta-se outra substância que a torna ainda mais especial. A Estrada Nacional 222 ficou à frente de muitas outras, de países como Alemanha, França Espanha, Japão, Nova Zelândia, Argentina, Estados Unidos, etc. Em Portugal, as concorrentes foram duas: a N267, que liga São Marcos da Serra a Monchique, e a N247, que junta Colares à Praia das Maçãs, em Sintra. Agora, já se sabe, todos os (bons) caminhos vão dar à N222.
Fonte: www.observador.pt