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Quando a reorganização dos tribunais não bate certo, improvisa-se

Mês e meio de colapso do sistema informático dos tribunais desviou as atenções de problemas que podem revelar-se mais duradouros: afastamento das populações da justiça, abandono de edifícios e concentração de serviços em imóveis com falta de condições adequadas.

Quando a reorganização dos tribunais não bate certo, improvisa-se

Começou mal a reorganização dos tribunais portugueses de primeira instância: dos quatro meses que leva de vida, 45 dias foram passados a tentar ultrapassar o pandemónio provocado pelo colapso da migração electrónica dos processos. Entre o início de Setembro e meados de Outubro os responsáveis do Ministério da Justiça desdobraram-se em declarações assegurando uma quase normalidade que mais ninguém no sistema — advogados, magistrados, funcionários judiciais — conseguia vislumbrar.

Como os computadores se recusavam a permitir o acesso aos processos, restava voltar a trabalhar à moda antiga — em papel. O problema é que muitos dos volumes também tinham mudado para outros tribunais, por via do mapa judiciário, amontoando-se por onde se arranjou espaço, de caves a salas de audiências. Improvisou-se como se pode. E mesmo hoje, com os problemas da plataforma informática Citius em grande medida resolvidos, o improviso continua a ser a maneira de resolver questões levantadas por uma reforma que há quem considere ter sido traçada “a regra e esquadro”, sem maleabilidade suficiente para se adaptar a um país onde as diferenças entre litoral e interior ainda pesam muito.

Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, é uma das que pensa assim. “Os episódios lamentáveis com o Citius mostram como faltou preparação a esta reforma. O caos que se gerou trouxe tudo menos a desejada eficiência”, observa, recordando a forma como foram concentrados serviços em tribunais “que não tinham condições para receber” tamanho volume de processos, juízes e funcionários. Muitos deles vieram dos 20 tribunais encerrados este Verão e dos 27 que se mantiveram abertos, mas com competências reduzidas ao máximo — transformados nas chamadas secções de proximidade.

Em alguns distritos, que no jargão judiciário desta reforma dão pelo nome de comarcas, vive-se um paradoxo difícil de explicar: fecharam-se edifícios construídos de raiz para serem tribunais, com 15 anos de uso ou pouco mais do que isso, para se transferirem armas e bagagens para as capitais de distrito, para imóveis que em vários casos tinham piores condições. Uns sofreram obras de adaptação, outros nem por isso, para desespero dos magistrados que ficaram à frente das novas comarcas.

Quando a reorganização dos tribunais não bate certo, improvisa-se

“Ó doutora, não tínhamos dinheiro”
“A opção não foi pela qualidade dos edifícios, mas pelo volume processual”, assinala a juíza que dirige a comarca de Viseu, Maria José Monteiro Guerra. Por outras palavras: fecharam-se os tribunais que tinham pouca procura por parte dos cidadãos.

Mesmo não se mostrando adepta de ter um tribunal em cada esquina, Conceição Gomes diz que há situações que vai ser necessário corrigir, sobretudo no interior, como em Trás-os-Montes. Logo a 1 de Setembro a ministra Paula Teixeira da Cruz assegurou que não havia nenhum tribunal que tivesse ficado a uma distância superior a 59 quilómetros do tribunal de origem. Mas há quem tenha feito as contas, como João Nuno Sequeira, da delegação de Castro Verde da Ordem dos Advogados, e chegado a resultados bem diferentes.

Dos vários exemplos que dá de distâncias que excedem a garantia ministerial salienta os 125 quilómetros que terá de percorrer quem quiser tratar de assuntos relacionados com família e menores e morar em Barrancos. É que o respectivo tribunal foi provisoriamente sediado em Ferreira do Alentejo. Mas mesmo quando for transferido para Beja a distância a partir de Barrancos continuará a ser muito superior aos tais 59 quilómetros.

A coordenadora executiva do Observatório da Justiça confirma o que os responsáveis por várias comarcas já constataram: é nas questões relacionadas com divórcios, regulação do poder paternal e pensões de alimentos que o problema do afastamento da justiça se tem revelado mais premente. “É o tipo de litígio que não pode ser concentrado [nas capitais de distrito, por exemplo], por obrigar a muitas idas a tribunal”, explica Conceição Gomes.

Na comarca de Viseu, a região de Lamego foi a mais afectada pelo fecho de tribunais. É aqui que a juíza encarregue das questões de família e menores já ouviu da boca de pais e mães as razões para terem faltado a diligências previamente marcadas pelo tribunal: “Ó doutora, não tínhamos dinheiro nem tínhamos transporte.”

“É um problema social”, reconhece a presidente da comarca, que vai pedir ajuda aos municípios da região para resolver o problema.

Faltam funcionários judiciais
Para o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, Mouraz Lopes, a lei da reorganização judiciária publicada em Diário da República “colidiu com a realidade”. Tão simples quanto isso. “Faltou-lhe dimensão prática”, observa o magistrado, chamando a atenção para tudo o que foi feito “de improviso”, para colmatar falhas criadas pelo mapa judiciário. Uma opinião partilhada por Conceição Gomes, que chama a atenção para os meios que uma reforma desta envergadura exige.

Quando a reorganização dos tribunais não bate certo, improvisa-se

“As principais dificuldades, para além das que derivaram da situação da plataforma Citius, cujos efeitos continuarão a fazer-se sentir, relacionam-se com a inadequação de instalações e com a escassez de funcionários judiciais”, informa o Conselho Superior da Magistratura sobre estes primeiros quatro meses de reorganização judiciária.

Paula Teixeira da Cruz tem vindo a anunciar a contratação de seis centenas de novos oficiais de justiça, mas a sua chegada aos tribunais tarda. Por outro lado, os dez milhões de euros gastos em 2014 com as obras exigidas pela reforma — ajustes directos na sua quase totalidade — e os 20,5 milhões orçamentados até 2016 não incluem trabalhos considerados fundamentais por quem está no terreno.

Para o juiz que dirige a comarca de Setúbal, Manuel Sequeira, a ampliação do Palácio da Justiça que está em curso na capital de distrito, e que vai custar 3,3 milhões de euros, não faz grande sentido: “Mesmo depois de as obras terem terminado o espaço não vai chegar. Mais valia construir um novo edifício de raiz.”

“No Porto não foram feitas as obras necessárias, nem de longe”, diz também o juiz que dirige esta comarca, José António da Cunha. “Faltam salas de audiências e há locais onde vai voltar de certeza a chover neste Inverno.”

De nada vale aos magistrados serem mais produtivos se depois não conseguem marcar os julgamentos por falta de instalações. Nalguns tribunais da comarca de Aveiro já foi preciso interromper julgamentos por causa do frio que se fazia sentir, descreve o juiz-presidente, Paulo Brandão. “Não há dinheiro para o aquecimento.”

Falta avaliar no terreno
Em Loures o busílis é outro: a ampliação do Palácio da Justiça — que ainda nem começou, ao contrário do que estava previsto — obrigou à transferência, em Setembro, de parte do tribunal para contentores. Logo nesse mês tiveram de ser montadas ratoeiras nos módulos metálicos, que têm uma zona arborizada contígua. O convívio entre o universo judicial e o reino animal tem-se mantido. “Há semanas encontrámos ninhos de ratos”, conta uma funcionária.

“Não peçam ao Ministério da Justiça, evocando a reforma, que resolva, em três anos, problemas acessórios que se arrastam há 30”, diz a tutela, numa resposta ao PÚBLICO sobre as contingências do mapa judiciário.

O ministério não esclarece quais são os principais problemas identificados pelo grupo de trabalho que criou para acompanhar a reorganização dos tribunais. “Esse grupo de trabalho é uma ficção”, observa Mouraz Lopes. A opinião de Conceição Gomes não é muito melhor: “A reforma tem de ser monitorizada no terreno, de forma científica — e não a partir de Lisboa.”

Vista da capital, a situação dos tribunais em bom estado que deixaram de servir as populações não é dramática. Os edifícios arrendados ou emprestados pelas autarquias foram devolvidos aos proprietários. Quanto aos restantes, ou “continuarão a ser utilizados pelo Ministério da Justiça, como extensão dos serviços de Registos e Notariado”, ou “está em estudo a hipótese de ali virem a ser instalados outros serviços públicos”, refere o Ministério da Justiça.

No terreno, porém, o caso muda de figura, como relata o presidente da Câmara de Portel, onde um edifício que nem década e meia de existência tinha ficou reduzido a uma conservatória e a um cartório no rés-do-chão que, segundo o autarca, nem 20% do imóvel ocupam. “Ficou com um ar de completo abandono. Tem os estores partidos e nem caiado foi”, lamenta José Manuel Grilo.

Em Paredes de Coura o cenário tem contornos idênticos. “Os processos transitaram para Valença do Minho, que só tem uma sala de audiências”, lamenta o presidente do município.

Tutela “em estado de negação”
Portalegre é uma das comarcas onde os interesses das populações falaram mais alto: há juízes a deslocarem-se para fazerem julgamentos mais perto dos locais onde vivem as partes interessadas. “Esta reforma não levou em conta as especificidades do interior”, refere o presidente da comarca, Tomé de Carvalho. “Foi muito feita a regra e esquadro.”

Por isso, em cada distrito improvisa-se como se pode. Desdobram-se secções de tribunais, inventam-se novas salas de audiências a partir de bibliotecas, transformam-se secções de competência genérica em tribunais especializados. Quer a tutela governamental quer o Conselho Superior da Magistratura têm sido chamados a aprovar várias destas alterações, que não deverão ficar por aqui. Um dirigente do Ministério da Justiça alertou em Setembro os juízes para os custos acrescidos de combustível que podem vir a representar as deslocações, mas o seu aviso parece não ter condicionado os magistrados.

“É preciso reorganizar a reforma”, equaciona o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, para quem a tutela se encontra “em estado de negação”.

“Tenho muitas dúvidas de que daqui a dois anos se possa dizer que esta reforma tornou os tribunais mais eficientes e mais próximos das pessoas, como se pretendia”, diz por seu turno Conceição Gomes. “Nas últimas duas décadas foram feitas várias reformas deste tipo. Mas as pessoas continuaram a queixar-se da morosidade e da ineficiência dos tribunais.”

Fonte: www.publico.pt

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