Casa do Douro vai morrer e deixa como herança dívida de 167 milhões ao Estado
No dia 1 de Janeiro, a outrora mais poderosa organização agrícola do país vai ser extinta. A associação que a substituir não terá natureza pública nem inscrição obrigatória. A sua dívida de 167 milhões e um stock de nove milhões de litros de vinho do Porto passam para o Estado. O sector, a braços com decisões urgentes, prepara-se para meses de vazio e incerteza.
Depois de 82 anos de história como organismo de representação dos produtores de vinho da região, a Casa do Douro vai deixar de existir no dia 1 de Janeiro de 2015. O que está prestes a acabar não é apenas o último vestígio da organização corporativa do Estado Novo nem a única associação de agricultores de direito público e inscrição obrigatória; com o ano novo acaba também o impasse sobre um volume de dívidas que rondam os 167 milhões de euros acumulados pela Casa do Douro (CD).
Extinta a CD enquanto associação pública, fica também em aberto um buraco na representação dos agricultores que ameaça paralisar o processo de decisão de um sector que está longe de viver os melhores dias.
Há mais de 20 anos que a CD ocupa um lugar privilegiado nas agendas dos ministros da Agricultura. “Isto [a paralisia institucional e a dívida] tinha de acabar um dia”, explica o secretário de Estado da Agricultura, José Diogo Albuquerque, que tem gerido o processo. A megalomania da sua gestão no princípio dos anos de 1990 levou-a a adquirir enormes volumes de vinho para os quais teve de obter financiamento.
Num dos negócios mais polémicos dessa época, a CD adquiriu 40% do capital da Real Companhia Velha por 9,6 milhões de contos (pouco menos de 50 milhões de euros a preços actuais) e após anos de disputas judiciais nunca nomeou administradores na sociedade nem recebeu qualquer dividendo. Para acentuar a sua agonia, o Estado, sob pressão intensa dos exportadores, foi-lhe retirando funções e receitas. A CD que se prepara para fechar as portas é, por isso, apenas uma pálida imagem da que foi a mais poderosa, rica e influente organização de agricultores do país.
O clima de insolvência que paira sobre a CD afectou o ritmo de trabalhos do Conselho Interprofissional do IVDP, onde os problemas do Douro e do vinho do Porto são decididos. “No último ano, o conselho reuniu muito pouco”, diz Isabel Marrana, da Associação de Empresas do Vinho do Porto, que explica a paralisia do órgão com o facto de a “representação da produção estar a termo fixo” que lhe retira a “estabilidade”. Questões essenciais como o congelamento por parte do Governo das verbas pagas pelo sector para efeitos de promoção não estão sequer a ser discutidas. E, mais grave para os exportadores é o facto de não se saber quando haverá uma associação que substitua a actual.
O Governo tentou evitar vazios de poder concedendo à actual direcção a possibilidade de renomear os seus actuais corpos dirigentes, que se encarregariam de elaborar estatutos para uma associação privada. Era uma proposta de “mudança por dentro”. Mas, a manutenção da actual equipa teria de ser decidida num prazo de 20 dias, que já terminou. Em duas tentativas, o Conselho Regional de Viticultores, a assembleia magna da região, composta por 125 membros, nunca conseguiu renuir conselheiros em número suficiente para cumprir a exigência de uma maioria absoluta.
Falhando esta meta, o Conselho poderia ter optado pela convocação de eleições. Mas, após 20 dias na tentativa de prolongar o mandato de Manuel António dos Santos, acabaria por concluir que já não tinha tempo para o fazer antes do dia 31 de Dezembro. “Os prazos impostos pelo Governo são inexequíveis”, afirma António Januário, um dos directores da CD. Para o Ministério da Agricultura, o cenário é diferente. “A impossibilidade de a Casa do Douro conseguir quorum é sinal de alguma coisa”, aponta José Diogo Albuquerque.
Sem uma solução de continuidade, a associação que renascerá das cinzas da Casa do Douro, podendo usar o seu nome e receber parte do seu património, será escolhida por concurso. “Uma inovação”, diz Isabel Marrana. Os critérios para a escolha da associação vencedora serão definidos por portaria e, para que não faltem candidatos, o Governo garantiu uma série de benefícios a quem ganhar a corrida. Para além de ficar com a sede, que historicamente é património dos lavradores durienses, a associação vencedora ficará com seis lugares garantidos no Conselho Interprofissional no seu primeiro mandato, poderá receber como quotas as taxas pagas pela produção no IVDP (referentes às declarações de colheita e produção) e terá direito aos bens remanescentes ao processo de liquidação da dívida. Se o gigantesco stock de vinho do Porto vai servir como pagamento das dívidas ao Estado (ver texto ao lado), a Casa do Douro é ainda dona de vários armazéns na Régua, de edifícios em várias vilas da região e da participação na Real Companhia Velha ligeiramente superior a 30%.
A definição de regras do concurso e a criação de uma associação privada a partir do zero ameaçam, no entanto, prolongar o vazio institucional no Conselho Interprofissional, numa altura em que “há no sector imensos assuntos estratégicos a tratar”, avisa Isabel Marrana. Outra preocupação relaciona-se com a falta de dinâmica associativa na região, que, na opinião da secretária-geral da AEVP, faz do concurso “um risco”. Porque “pode surgir uma associação que não tenha legitimidade para representar o Douro”, avisa. Isabel Marrana fala em termos teóricos, mas no Douro esse “risco” está bem identificado: as confederações agrícolas nacionais, a CNA e a CAP, que nunca foram capazes de ganhar protagonismo na região, espreitam agora a oportunidade de entrar num sector que vale 500 milhões de euros por ano – a CNA controla a Avidouro, uma pequena associação.
Mas, até ao dia do concurso, o esvaziamento da natureza pública da Casa do Douro ainda vai exigir trabalho à actual direcção. Até ao final da próxima semana, a instituição terá de levar ao Governo os relatórios de gestão dos últimos cinco anos, a relação das dívidas a privados e ao sector público e realizar uma provisão para garantir a indemnização dos trabalhadores sem vínculo ao Estado que cessam funções a 31 de Dezembro – são cerca de 20; a maior parte, cerca de 30, têm o estatuto de funcionários públicos e passam ao quadro de mobilidade especial.
Quando a nova associação aparecer, estará livre das dívidas, terá a imponente sede da Régua, cerca de seis milhões de euros em vinho e, possivelmente, outros activos imobiliários. Mas estará longe de poder imitar o poder da Casa do Douro antes dos 30 anos de gestão ruinosa que a levaram à irrelevância e à dívida.
Fonte: www.publico.pt