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Júlio Pomar com o Douro a seus pés

O pintor foi homenageado no fim-de-semana pelo Plast&Cine, em Lamego. E encontrou-se, rio Douro acima, com Cruzeiro Seixas e Roberto Chichorro, os distinguidos nas edições anteriores

Júlio Pomar com o Douro a seus pés

 Foi com uma alegria infantil, que os seus olhos expressaram a cada novo momento do programa, que Júlio Pomar viveu, no fim-de-semana, a homenagem que lhe foi prestada pela 5.ª edição do Plast&Cine, em Lamego. “Sinto-me como o menino entre as bruxas, como na expressão popular; mas aqui não há bruxas, as pessoas são todas muito simpáticas”, confidenciava o pintor ao PÚBLICO, entre risos, na manhã de sábado, no final da inauguração da sua exposição Outras Histórias, que irá permanecer no Museu Diocesano – Casa do Poço naquela cidade, até 14 de Novembro.

Mas o programa que começara na véspera, sexta-feira, com uma subida do rio Douro de barco, incluiu uma visita ao Museu do Douro, na Régua, e uma homenagem, com fado e vídeo, no Teatro Ribeiro da Conceição, em Lamego. O segundo dia abriu com teatro de rua a encenar a vida e obra do pintor (n. Lisboa, 1926), passou depois pela inauguração da exposição e terminou com uma conferência.

Foi esta a agenda do Plast&Cine, a mostra interdisciplinar de artes promovida pela Câmara Municipal de Lamego este ano dedicada a Júlio Pomar. Logo à saída do cais de Vila Nova de Gaia, manhã cedo, o pintor, que ia subir o Douro pela primeira vez, confessava aos jornalistas a sua rendição às atenções que lhe estavam prometidas. “Haverá alguém que não goste de ser gostado?…”

Um dos hábitos do Plast&Cine é convidar, a cada ano que passa, os homenageados das edições anteriores que estejam disponíveis para acompanhar o novo distinguido. Assim, Júlio Pomar teve como parceiros de viagem na embarcação que subiu o rio – o catamarã Independência, repescado da ligação marítima Funchal-Porto Santo – o seu companheiro dos tempos da Escola António Arroio, Cruzeiro Seixas (n. Lisboa, 1920), e o moçambicano Roberto Chichorro (n. Maputo, 1941), respectivamente homenageados em 2011 e 2012. José Rodrigues e Emília Nadal não puderam comparecer.

Pomar não conhecia Chichorro, que só tinha falado pela primeira vez com Cruzeiro Seixas no ano passado, em Lamego. Já Pomar e Seixas, que, depois da António Arroio, seguiram vidas e carreiras diversas, não se viam desde um encontro há já vários anos no atelier do primeiro em Paris. Os três artistas reuniram-se agora, e o primeiro encontro foi frente aos repórteres de imagem. “Com tantas fotografias, vamos ficar desalmados…”, gracejava Cruzeiro Seixas. Mais à frente, já Douro acima, Pomar falaria da sua permanente disponibilidade para a amizade. “O que faz as pessoas estarem vivas é a sua capacidade de fazer amigos; se alguém vai parar a uma ilha deserta, é porque alguma coisa de mau lhe aconteceu.”

Menos optimista, Cruzeiro Seixas, agora radicado em Famalicão, lamentava os amigos desaparecidos. “Quem me dera poder ressuscitar todos os mortos que me fazem tanta falta, principalmente o Mário Cesariny [de Vasconcelos]; mas ele está sempre presente.” Chichorro confessava a felicidade por finalmente se encontrar com duas figuras que fazem parte do seu imaginário. “Tinha muita pena de ainda não conhecer o Júlio Pomar pessoalmente; a obra dele encantou-me desde sempre.”

Douro versus Tejo

Os favores do clima ajudavam à subida do rio, sem a chuva que nos dias anteriores tinha caído quase em permanência, e o sol chegou mesmo a banhar com uma luz mais intensa as margens do Douro. “É um rio lindíssimo, com este verde espantoso da água, que não vi em parte nenhuma. Eu tenho a experiência do Tejo, mas não é tão pictórico como o Douro”, dizia Cruzeiro Seixas, que, antes, só tinha subido este rio uma vez, num barco rabelo. Falou da ausência de pintores do Tejo – “pintam os barcos, as margens e pouco mais” -, em contraste com a variedade de abordagens do Douro. E partilhou com Pomar a recordação de Dórdio Gomes, “que tinha uma grande facilidade para pintar as terras, e pintou os mais belos quadros do Douro”.

Pomar limitava-se a olhar, e a guardar a imagem de uma paisagem que para si era nova. “Sentimo-nos tão pequeninos que a vontade toda é a de ficarmos a ver, muito caladinhos, numa atitude de nos deixarmos inseminar pelo que nos rodeia.” Significa isto que o Douro poderá vir a surgir nas telas do pintor no futuro? “Não sei. Tudo é possível. Normalmente, essas coisas acontecem sempre ao contrário daquilo que prevemos. A maravilha da arte e da vida é a gente não ser capaz de prever tudo.”

Chichorro aproveitava também o fluir da viagem, inclusive os momentos de pausa para o barco vencer o desnível das águas nas barragens. “Até o estar aqui fechado nesta eclusa é uma sensação magnífica; parece que estamos num filme de ficção científica.”

Chegados à Régua, os convidados do Plast&Cine foram visitar o Museu do Douro, onde puderam admirar duas exposições de fotografia: O México Fotografado por Luís Buñuel, com as repérages que o realizador espanhol fez para os seus filmes, na década de 1950, no país para onde se exilou do franquismo; e Douro, de Georges Dussaud, com fotografias maioritariamente feitas na década de 1980, mas também actualizadas em 2012, e que o fotógrafo francês doou ao museu da Régua. Foi uma nova descoberta para Júlio Pomar: “É um retrato extraordinário da gente desta terra.”

Encontro com o fado

À noite, no recentemente renovado e belíssimo Teatro Ribeiro da Conceição, mas perante uma plateia desoladoramente vazia de população local, Júlio Pomar foi presenteado com um pequeno recital de fado por Aldina Duarte. Depois da exibição do documentário sobre a obra do pintor, Só o Teatro É Real, de Tiago Pereira, a fadista cantou cinco fados para alguém que classificou como “uma das figuras fundamentais da [sua] formação humana e artística”. E até confessou que, antes de descobrir a vocação do fado, enquanto estudante na António Arroio tinha feito um trabalho sobre… Júlio Pomar e Paula Rego. “Este foi um dos encontros mais importantes da minha vida artística”, acrescentou Aldina Duarte no final da actuação.

O fado haveria de voltar ao encontro do pintor na manhã seguinte, através da “banda sonora” da exposição Outras Histórias, mas também da inesperada presença de Camané, que se deslocou de propósito a Lamego para homenagear “um amigo”. E também para ver a sua exposição. “Conheço a pintura do Júlio Pomar há já alguns anos, e vou-a acompanhando, mas há aqui quadros que não conhecia; estou também contente por isso”, disse o fadista ao PÚBLICO. Pomar, que recentemente descobriu no fado um novo motivo não só para a pintura mas até para a escrita – fez a letra do Fado do 112 para Carlos do Carmo -, manifestou a sua satisfação por estes encontros fadistas, e elogiou Aldina Duarte, que descobriu também recentemente, como “uma das grandes vozes do fado, com uma grande sensibilidade”.

À chegada ao Museu Diocesano, o pintor foi recebido com uma pequena representação rapsódica da sua vida e obra pelo grupo de teatro local O Andaime. Com uma afluência já assinalável de pessoas da terra, principalmente estudantes – à mistura com os inúmeros turistas que entravam e saíam da Sé de Lamego -, a inauguração da exposição de Pomar foi antecedida pela estreia do documentário Andarilho em Cores de Beija-Flor, dedicado ao homenageado do ano passado, Roberto Chichorro.

Depois, foi a visita guiada a alguns momentos – e histórias – da extensíssima obra de Pomar, numa selecção de 35 serigrafias que revisitam séries dedicadas a tigres (1994), macacos (1997) e, principalmente, à que registou a sua experiência junto de uma tribo de índios do Amazonas, Le sel de la mémoire (Méridiennes. Mères indiennes, 2003). “Pensava passar lá duas semanas, acabei por ficar dois meses no mato, sem arredar pé; e proibi-me de pintar, apenas tirei apontamentos; não queria ser perturbado, apenas ser inseminado por aquilo que via e vivia”, recordou o pintor sobre a experiência que viria a dar origem a uma das séries mais conhecidas dos últimos anos da sua produção.

“Júlio Pomar – e há poucas figuras de quem se possa dizer isto – é alguém em quem nós conseguimos encontrar, a partir do momento em que ele aparece nos anos 40, obras-chave, exemplares, nos vários períodos do seu percurso, que são emblemáticas da arte portuguesa das várias décadas.” A apreciação é de Laura Castro, que, com o pintor Francisco Laranjo e Vítor Pomar, filho do homenageado, fariam a conferência de encerramento do Plast&Cine 2013.

A historiadora de arte destacou também a importância da escrita e da reflexão com que Pomar sempre acompanhou a sua criação. “A sua obra ensaística é única no campo da literatura artística portuguesa. Ele tem uma profundidade e densidade na reflexão que faz sobre o que é a pintura que é extraordinária”, acrescentou Laura Castro, sem esquecer a plêiade de referências da sua obra, “que vêm da maior erudição aos temas mais populares: os provérbios, as parábolas bíblicas, que ele congrega na obra plástica com uma colagem”.

Fonte: www.publico.pt

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